Histórias do Povo da Rua: de Volta para Casa

Às 6 da manhã de ontem, sexta-feira, 26 de junho, um carro parou à porta da casa de hospedagem para levar Álvaro Leôncio de Freitas Reis, de 49 anos, de volta para a família, em Governador Valadares, a 316 quilômetros de Belo Horizonte. Localizada na Região Leste de Minas, a cidade pertence ao Vale do Rio Doce. O tempo estimado da viagem entre as duas cidades é de aproximadamente 4h48m. De banho tomado, roupas limpas, ele foi carregado por dois voluntários, pois não consegue mais nem ficar de pé sozinho depois de 30 anos em situação de rua.

Entre idas e vindas na rua, Álvaro foi perdendo a condição humana. Nos últimos tempos se ajeitava – com os poucos pertences – em frente ao Edifício Acaiaca, na Avenida Afonso Pena. Desde que saiu de casa, aos 16 anos, por causa do péssimo relacionamento com o pai, “uma pessoa violenta, que me espancava”, não voltou mais. A briga definitiva com o pai, o levou para a rua. “Ele jogava em mim o que estivesse por perto. Certo dia, bateu forte com um facão, o cabo da enxada e revidei. Cansado das agressões contínuas respondi à violência dele – e a família toda ficou contra mim”.

A violência do pai o transformou em andarilho: de Governador Valadares foi para Vitória, depois Rio de Janeiro, Paraná, São Paulo e, por fim, Belo Horizonte. A resposta à pergunta “o que é a rua”? Álvaro responde: “No início é complicado, pois a gente não tem traquejo para viver na rua, sem trabalho e sem teto. Passei fome, fui humilhado. Quem passa por você, não entende a situação. Nem quer entender. Xinga a gente de vagabundo, de escória da sociedade. Certo dia pedi um copo de água em uma fazenda.  O sujeito saiu lá de dentro atirando”.

Com uma tristeza profunda, Álvaro confessa: “São raríssimas as pessoas que têm um olhar de compaixão para as pessoas em situação de rua. A maioria sente um profundo desprezo, até nojo. Você sabe o que essas pessoas pensam pelo jeito de olhar, de se aproximar, de te tratar”.
Depois de conhecer o código da exclusão social de quem vive em situação de rua, que é “a humildade”, Álvaro teve um acidente. Caiu de uma altura significativa, quebrou os dentes, ficou com a mão torta – e paralisado da cintura para baixo, por falta de assistência médica e hospitalar. Mesmo assim continuou na rua.

Três dias antes de voltar para casa, uma das voluntárias do Canto da Rua Emergencial, sediado na Serraria Souza Pinto passou por ele na Avenida Afonso Pena. Parou, se emocionou, ouviu, olhou e perguntou se ele queria ir para a Serraria Souza Pinto, onde fica o Canto da Rua Emergencial. Iniciativa da Pastoral de Rua da Arquidiocese de BH aliada à pastoral nacional e a uma rede humanitária, para atendimento a essa população vulnerável, que ficou ainda mais fragilizada com a chegada da Covid-19.

Ele disse sim. A voluntária do Canto da Rua Emergencial, então, ligou para o senhor Carlos, de 62 anos, da Fundação Espírita Cárita. Ele pediu um táxi e chamou o irmão dele para ajudar a levar Álvaro até a Serraria Souza Pinto. Lá, ele foi atendido pela assistente social Flávia Gonzaga. Passou pela “Escuta Social”, tomou banho, pois “a sujeira estava grudada no seu corpo, até com piolhos nos cabelos”, saciou a fome e conseguiu uma cadeira de rodas para se movimentar. A cadeira veio de um doador de Santa Luzia, na Região Metropolitana de BH.

O maior presente para Álvaro chegou no mesmo dia. O contato da assistente social do Canto da Rua Emergencial com alguém da família dele, em Governador Valadares. Com um tio que acionou imediatamente um veículo para vir buscá-lo e uma vaga para tratamento no Hospital Samaritano daquela cidade. Pediu alguns dias para planejar a viagem em busca de Álvaro. Da Serraria Souza Pinto, ele foi levado para uma das três hospedagens que a Pastoral de Rua de BH reserva para ocupação segura dos mais velhos e dos doentes crônicos, em tempos de pandemia.

Não demorou nem três dias quando o carro vindo de Governador Valadares parou em frente à hospedagem, para levá-lo de volta para casa. Álvaro parecia um novo homem, acolhido em sua dignidade, sujeito de direitos. Dá para imaginar que a esperança brotou de novo, pois deixou para trás as humilhações e agressões físicas. A partir de agora é protagonista da própria história de vida.  Boa sorte Álvaro, em sua nova jornada!

Em tempo: É bom dizer que o pai de Álvaro faleceu, que a mãe e uma das irmãs estão em Salvador (BA), outro irmão em Guarapari e o terceiro na Flórida (EUA), que ele está sendo acolhido por um tio.

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FONTE: https://www.instagram.com/p/CB86aw1lGH5/?igshid=ps3wbnhgyqwx